25 de setembro de 2013

Se se morre de amor...







Há algum tempo, eu estava na casa de uma amiga assistindo à final da Copa, quando a filha desta, em meio às tagarelices com outras jovens, contava o final de um romance do autor português, Camilo Castelo Branco, que acabara de ler, no qual o protagonista, impedido de casar-se com a sua amada, adoece de tristeza, definha e morre de amor. As outras começaram a questionar a verossimilhança da história, atribuindo o final trágico aos exageros da mentalidade romântica e sentimentalista do século XIX. A mais descrente delas resolveu perguntar para o irmão, que passava pelo grupo, se podia alguém morrer de amor. Não pude perceber a resposta do jovem dada em meio a rumores de risadas e de falas alvoroçadas do grupo.


Esta pergunta, no entanto, trouxe-me à memória o poema de Gonçalves Dias, poeta do Romantismo brasileiro, que tem como título esta mesma indagação: “Se se morre de amor” . Falei para as jovens sobre isto, relatando a história romântica que envolve a composição do poema, prometendo-lhes que postaria aqui no blog alguma coisa sobre o assunto. Ora bem, eu pensava que a moçada não dava bolas para poesias de amor, que achavam brega as aventuras e desventuras românticas. Enganei-me. Entre muitas adolescentes, ainda sobrevivem almas românticas e sonhadoras que acreditam no amor, da mesma forma como perdura a eterna busca do “outro” e da completude inerente à reciprocidade amorosa. 


Na poesia "Se se morre de amor", um dos mais belos poemas de Gonçalves Dias, este estabelece a diferença entre o amor falso e o amor verdadeiro. Para ele, o amor falso é aquele nascido em festas, encontros fugazes, e desse amor não se morre. O amor verdadeiro é mais puro, os apaixonados experimentam efeitos parecidos com aos da contemplação religiosa: "Sentir sem que se veja a quem se adora. Segui-la sem poder fitar seus olhos”. E é desse amor que se morre. 


Ler a poesia sem conhecer o drama amoroso do poeta que lhe deu origem, equivale a perder muito da áurea romântica e humaníssima que a envolve. Portanto, vamos antes conhecer um pouco da triste e sofrida história do amor irrealizado de Gonçalves Dias e Ana Amélia.






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"Gonçalves Dias viu Ana Amélia pela primeira vez em 1846 no Maranhão. Era ela quase uma menina, e o poeta, fascinado pela sua beleza e graça juvenil, escreveu para ela as poesias "Seus olhos" e "Leviana". Depois, indo para o Rio, é possível que essa primeira impressão tenha desaparecido do seu espírito. Mais tarde, porém, em 1851, voltando a São Luís, viu-a de novo, e já então a menina e moça se fizera mulher, no pleno esplendor da sua beleza desabrochada. O encantamento de outrora se transformou em paixão ardente, e, correspondido com a mesma intensidade de sentimento, o poeta, vencendo a timidez, pediu-a em casamento à família.


 A família da linda Don`Ana -- como a chamavam -- tinha o poeta em grande estima e admiração. Mais forte, porém, do que todo este apreço era, naquele tempo no Maranhão, o preconceito de raça e de origem. E foi em nome desse preconceito que a família recusou o seu consentimento. O poeta era homem de cor, filho bastardo de pai português e de mãe mestiça das raças indígena e negra.


 Por seu lado o poeta, colocado diante das duas alternativas: renunciar ao amor de Ana Amélia ou à amizade dos seus preconceituosos pais. Preferiu sacrificar aquele a esta, levado por um excessivo escrúpulo de honradez e lealdade, que sempre revelou nos mínimos atos de sua vida. Tomado de tristeza, o poeta partiu para Portugal. A sua renúncia foi tanto mais dolorosa e difícil por que Ana Amélia, que estava resolvida a abandonar a casa paterna para fugir com ele, o exprobrou, dura e amargamente, em uma carta por não ter tido a coragem de passar por cima de tudo e de romper com todos para desposá-la!


 E foi em Portugal, tempos depois, que recebeu outro rude golpe: Ana Amélia, por capricho e para fazer acinte à família, casara-se com um comerciante, homem também de cor como o poeta e nas mesmas condições inferiores de nascimento. A família se opusera tenazmente ao casamento, mas desta vez o pretendente, sem medir considerações para com os parentes da noiva, recorreu à justiça, que lhe deu ganho de causa, por ser maior a moça. Um mês depois falia, partindo com a esposa para Lisboa, onde o casal chegou a passar até privações. Ana Amélia sofreu muito na companhia do marido ciumento e grosseiro.


Quis o destino que, em Lisboa, num jardim público, certa vez se caprichoso de defrontassem o poeta e a sua amada, ambos abatidos pela dor e pela desilusão de suas vidas, ele cruelmente arrependido de não ter ousado tudo, de ter renunciado àquela que com uma só palavra sua se lhe entregaria para sempre. Desvairado pelo encontro inesperado e por não ter sido cumprimentado pela jovem (decerto temerosa da reação do ciumento marido), que lhe reabrira as feridas e agora de modo irreparável, compôs as estrofes do longo poema "Ainda uma vez -- adeus --" as quais, uma vez conhecidas da sua inspiradora, foram por esta copiadas com o seu próprio sangue," segundo foi falado na época.





A poesia “Se se morre de amor”, foi também inspirada na dor pela perda de Ana Amélia, uma dor que o acompanhou até seu fim trágico, no naufrágio, na costa do Maranhão, do navio que o trazia de volta à terra natal, já muito doente. Todos se salvaram, menos o poeta que foi esquecido pelos demais em seu leito, morrendo afogado.





Como a poesia é muito longa, transcreverei apenas um trecho da mesma:





SE SE MORRE DE AMOR!





Se se morre de amor! - Não, não se morre, 


Quando é fascinação que nos surpreende 


De ruidoso sarau entre os festejos; 


Quando luzes, calor, orquestra e flores 





Assomos de prazer nos raiam n'alma, 


Que embelezada e solta em tal ambiente 


No que ouve e no que vê prazer alcança! 


Simpáticas feições, cintura breve, 





Graciosa postura, porte airoso, 


Uma fita, uma flor entre os cabelos, 


Um quê mal definido, acaso podem 


Num engano d'amor arrebentar-nos. 





Mas isso amor não é; isso é delírio 


Devaneio, ilusão, que se esvaece 


Ao som final da orquestra, ao derradeiro 


Clarão, que as luzes ao morrer despedem: 


Se outro nome lhe dão, se amor o chamam, 





D'amor igual ninguém sucumbe à perda.


Amor é vida; é ter constantemente 


Alma, sentidos, coração - abertos 


Ao grande, ao belo, é ser capaz d'extremos, 





D'altas virtudes, té capaz de crimes! 


Compreender o infinito, a imensidade 


E a natureza e Deus; gostar dos campos, 


D'aves, flores,murmúrios solitários; 





Buscar tristeza, a soledade, o ermo, 


E ter o coração em riso e festa; 


E à branda festa, ao riso da nossa alma 


fontes de pranto intercalar sem custo; 





Conhecer o prazer e a desventura 


No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto 


O ditoso, o misérrimo dos entes; 


Isso é amor, e desse amor se morre! 





Amar, é não saber, não ter coragem 


Pra dizer que o amor que em nós sentimos; 


Temer qu'olhos profanos nos devassem 


O templo onde a melhor porção da vida 





Se concentra; onde avaros recatamos 


Essa fonte de amor, esses tesouros 


Inesgotáveis d'lusões floridas; 


Sentir, sem que se veja, a quem se adora, 





Compreender, sem lhe ouvir, seus pensamentos, 


Segui-la, sem poder fitar seus olhos, 


Amá-la, sem ousar dizer que amamos, 


E, temendo roçar os seus vestidos, 


Arder por afogá-la em mil abraços: 





Isso é amor, e desse amor se morre!








(Gonçalves Dias)


















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