19 de outubro de 2009

Nós éramos felizes e não sabíamos!





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Na minha inarredável crença no Carpe Diem horaciano e na sabedoria que reside na atitude de valorizarmos o tempo presente, evitando saudosismos desnecessários ou devaneios acerca de um futuro insondável, habituei-me a não me prender a recordações, a não cultivar saudades que me deixariam com aquele incômodo sentimento de perda a escurecer-me por dentro. Mas hoje, tive uma recaída e fiz uma longa viagem de volta aos meus outroras! Peço desculpas a quem não aprecia textos longos e talvez pobre de interesse, pois que fala de uma vidinha um tanto sem brilho.



Até algum tempo atrás, quando observava a vida das moças nos dias atuais, a liberdade ilimitada que têm, a forma como se comportam, como pensam e falam, vinham-me à mente algumas lembranças da época da minha juventude. A comparação era inevitável, pois era tudo tão espantosamente diferente! Mas não sei ao certo se era melhor ou pior. Na época, achávamos natural, não tínhamos noção de que poderia ser diferente.



Hoje, já tenho o distanciamento necessário para estabelecer comparações e perceber o quanto foi reprimida a vidinha que nos permitiu viver a sociedade severa dos anos cinqüenta. Tanto o meio social quanto os nossos pais eram repressores e vigilantes, cerceavam a nossa liberdade e nos impunham uma série de limites que não ousávamos transgredir. Namorava-se na calçada de frente a casa ou na varanda, sair sozinha com o namorado, nem pensar! Beijar na boca... só se fosse beijo roubado, escapando aos vigilantes pares de olhos que não nos perdiam de vista. Casávamos virgens, depois de um longo namoro e noivado (ainda era costume o rapaz pedir a mão da moça em casamento ao seu pai).





Mas, haviam coisas maravilhosas e inesquecíveis, como as serenatas que me acordavam na madrugada com românticas canções e acordes de violão. Não me casei com o dono da voz. Não que nos faltassem amor e vontade! Mas esta já é outra história de interferência familiar bem típica da época... melhor esquecer!





Quando explodiu o Rock in roll e Elvis Presley tornou-se moda, mania e paixão veio junto a interdição: moça decente não podia dançar o frenético e obsceno ritmo norte-americano. Seria um escândalo! A garota ficaria “falada”! Quem iria querê-la para esposa?! Foi um ai, Jesus! Fãs incondicionais de Elvis, eu e meu irmão não resistimos à tentação e demos uma fugidinha até um clubinho que havia perto da nossa casa, para balançar os esqueletos naquela consumição, com uma turma do colégio. Nem gosto de lembrar o pandemônio que fez a minha mãe, quando retornamos. Só comigo, é claro! Meu irmão “era homem”, podia tudo!





Éramos privadas de muitas coisas que hoje são banalidades: não podíamos ingerir bebidas alcoólicas, cigarro só depois dos 21 anos e biquíni era traje de moça “falada”. Rapaz que tirasse a virgindade da namorada, era obrigado a “salvar a honra” da moça, casando-se com ela, quisesse ou não. Pois moça “não dava”, se “desse” levava o rótulo de “moça perdida”, com a qual nenhum rapaz que se prezasse casaria. A mulher não tinha liberdade, quando solteira obedecia aos pais, depois de casada apenas mudava de dono e passava a ser tutelada pelo marido. Poucas trabalhavam fora de casa e raras tinham permissão para saírem desacompanhadas (para não caírem na boca do povo).



Mas, nem tudo era negativo, tínhamos formas de diversão que nos proporcionavam muita satisfação. Sem televisão para roubar os diálogos familiares, havia mais proximidade entre as pessoas, havia o costume de fazer visitas a amigos e familiares, oportunizando muito mais convivência e aconchego com primos, tios e velhos amigos. Na rua onde eu morava, os vizinhos eram nossos amigos e nas noites calorentas de Verão juntavam-se todos para, sentados em cadeiras na calçada, apreciar o luar e conversar, enquanto a criançada brincava de roda, de amarelinha, de pular corda, em feliz alarido etc.





Nas festas de São João e de São Pedro, enfeitávamos a rua com bandeirolas coloridas, acendíamos fogueiras à frente das casas para assar milho, batata doce e acender foguetões. Dançava-se quadrilha, xote e baião de Luís Gonzaga, ao som dos discos de vinil rodando na vitrola posta na varanda. O vestido de caipira feito de chitão estampado era indispensável. Belos tempos! Havia romantismo nos namoros, muita paixão pelo cinema e pelas rádio-novelas.





Ainda me indago como foi que consegui adaptar-me às mudanças radicais operadas nos usos e costumes, na linguagem e nos comportamentos, especialmente das mulheres, a partir da década de 60 do século anterior. A virada foi muito violenta, rápida e contínua. Mudou tudo! No início, assustei-me. Senti medo de não saber como educar e orientar as minhas filhas, pois o modelo que eu havia interiorizado estava demolido, os valores da minha geração estavam virando piadas e eu ainda não assimilara as novidades defendidas pelas feministas e postas em prática por Leila Diniz, difundidas no cinema por Brigitte Bardot e Marilin Monroe, espalhadas pelo mundo pelo irreverente movimento hippie.



O surgimento da pílula anticoncepcional liberava, sexualmente, a mulher. Eram muitas informações e mudanças que colidiam com os meus valores e princípios, que desmentiam todas as certezas que me haviam incutido até então e, o pior, coincidiam com um momento de crise existencial que resultou em mudanças radicais em minha vida. Que roda viva!



Não sei como o milagre da minha adaptação às mudanças aconteceu. Só sei que, quando me dei conta, estava integrada nos novos tempos, sem me escandalizar, sem rejeitar o que os outros faziam. Apenas dava-me o direito de escolha do que realmente achava melhor para mim e de rejeitar o que não me convinha. Por exemplo, nunca quis usar mini saia, sempre detestei jeans (ainda abomino) e continuei rejeitando os palavrões, a bebida alcoólica, o sexo fora de uma relação afetiva séria e outras coisas que não tinham nada a ver com a minha personalidade e meu modo de estar na vida.





Consegui a façanha de ser uma mãe “moderna” para minhas filhas, vivendo a época delas, mas que impunha limites tanto quanto não dispensava o diálogo aberto e franco. Atravessei todo o período de mudanças, sem jamais dizer, com ar de censura: “no meu tempo as coisas eram diferentes”, como ouvi tantas vezes a minha mãe dizer, ao censurar-me por pequenas e inocentes ousadias que eu arriscava. Às vezes, diante de algumas mudanças que achava positivas, chegava a pensar cá com meus botões: “que pena não ter sido assim no meu tempo”. Mas vi também cenas desastrosas de mães que, com receio do choque entre gerações ou de parecerem retrógradas, punham os carros adiante dos bois, causando um grande estrago na vidinha das filhas e filhos ainda adolescentes.





Não vou negar que, às vezes, sinto saudades de algumas coisas daqueles tempos. Na verdade, sinto uma enorme saudade da vida sossegada, sem drogas, sem tanta corrupção e impunidade, sem violência urbana e no meio rural. Tenho uma imensa pena de ver os meus netos privados de viverem uma infância como foi a da minha geração e, de certo modo, a dos seus pais, com muitas brincadeiras a céu aberto, muito espaço para se moverem, sem games e tudo o mais que buscam na telinha da TV e do computador ou dentro dos shoppings, comportando-se como adultos em miniatura, passando pela infância sem saberem o que significa ser criança, pois se tornaram reféns da sociedade, da mesma sociedade que libertou seus pais.







Nos tempos da brilhantina, nós éramos felizes e não sabíamos, nos somos uma geração que viveu o período de maiores transformações no mundo...vivemos a história que hoje estudam nas escolas... Que vida!

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